sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Batismo - meu primeiro conto

Naquele dia ela acordou com uma vontade incontrolável. Um desejo profundo que não conseguia decifrar o que era nem de onde vinha.
Ficou deitada em silêncio por alguns instantes tentando se lembrar do sonho que tivera como se nele se encerrasse o sentido daquele mal estar.
Vazio. Não vinha nada na memória.
O desejo virou angústia. A angústia rapidamente tornou-se inquietação e ela decidiu fazer algo que há muito não tentava: sair de casa.

Em primeiro lugar abriu a porta.
Aliás, isso foi a segunda atitude, pois para quem estava trancada há tanto tempo o simples ato de encontrar as chaves já fora um desafio imenso. No final da busca pelas chaves o desgaste era tanto que ela quase desistiu de sair. Saiu, no entanto.

Se assustou ao notar a mudança nos arredores.
Não que a floresta na qual vivia fosse rica de vizinhos, mas o espanto foi enorme quando ela notou que a trilha que conectava a entrada de sua pequena casa ao restante do mundo havia se apagado.

Então era isso.
O que lhe aguardava era um trabalho de bandeirante. Haveria de meter as caras naquele matagal se quisesse alguma chance de acalmar sua alma. Porém a falta de senso de direção era seu ponto fraco. Um ponto fraco que sempre a fazia desistir de ir a qualquer lugar.
Foi aí que teve uma idéia.

Não era ingênua para acreditar em contos de fada, mas aprendia muito com eles. Sabia que se bancasse a protagonista de João e Maria ficaria para sempre perdida no meio da floresta. E seria certamente um final muito pior que o do conto original, afinal ela não tinha nem ao menos esperança de encontrar uma bruxa que a alimentasse até a morte. Assim como na história, era claro que se saísse jogando pães pelo caminho não encontraria nada na volta.
Porém, do tempo em que pensara ter um incontrolável instinto suicida ela guardava, além de algumas lembranças enevoadas, um saquinho de veneno. Aquele veneno que ela por tantas vezes quase ingeriu. Depois, mesmo quando desistiu do fim prematuro, achou que seria útil guardar. Enfim o momento era aquele. Do fundo de sua imaginação fértil veio o estalo. E lá foi ela com a cara, a coragem, um pacote de pães e um punhado de chumbinho.
Começou a caminhada a passos lentos. Não sabia exatamente o sentido daquilo tudo. De repente era como se toda sua vida tivesse sido deletada de sua memória. Por mais que tentasse não era capaz de lembrar seu passado. Apesar de ter consciência de que aquela era sua casa não conseguia recordar quem era ou como chegou lá.
Sentia que de alguma forma uma caminhada a faria resgatar muitas coisas perdidas.
Andava e ia deixando pelo caminho migalhas de pão envenenado.
Cada nova árvore, cada canto de passarinho e queda d'água parecia ao mesmo tempo profundamente desconhecido e levemente familiar.
Aí veio um cansaço. Uma fadiga repentina que lhe tomou o ar e ela sentou-se em uma pedra à sombra duma árvore. Foi quando as lembranças brotaram num fluxo alucinante de sua mente, assim como jorra o sangue de uma ferida profunda. E de certa forma era bem isso... aquelas lembranças todas a feriam.
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Na tribo de onde vinha a tradição era aquela. Assim que os jovens começavam a apresentar os primeiros sinais de maturidade e autonomia eram mandados para o que era tratado por todos apenas como “cabana”. Tudo o que sabia era que os jovens desapareciam do convívio geral e algum tempo depois voltaram totalmente transformados: na forma de vestir, corte de cabelo, maneira de falar, se portar... Às vezes parecia até que tinham sofrido alguma forma de lavagem cerebral.
Seu imaginário de criança ficava encantado com aquilo. Vivia a observar que não importava quanto tempo os jovens levassem para voltar da cabana (poderia ser algumas semanas ou até mais de um ano), eles sempre eram recebidos de braços abertos e da maneira mais natural possível. Era uma espécie de rito de passagem, algo como um batismo. Mas quando criança não era capaz de entender...
Pensando em tudo isso foi retomando a caminhada sem saber onde ia dar. Se embrenhou ainda mais floresta adentro relembrando sua infância, seu crescimento...e as recordações iam aos poucos se combinando numa massa de dados que começava a querer fazer sentido.
Finalmente conseguiu compreender que a casa em que acordou era a tal cabana e que ela estava finalmente vivendo o seu batismo. Ela deveria sair pela mata e descobrir seus dotes, sua forma de explorar a floresta de maneira inteligente e em seguida voltar e agregar aquelas novas experiências aos conhecimentos da tribo. Envergonhou-se por ter demorado tanto a entender. Não lembrava há quanto tempo estava naquele estado de torpor do qual acordara, mas era capaz de imaginar que tinha sido um tempo considerável, pois era assim que seu corpo funcionava: sempre que passava por algum momento de grande ansiedade era assolada por uma insegurança profunda e um sono paralisante.
Aquele breve momento de tomada de consciência (e as horas intermináveis de sono que deveria ter dormido) a encheu de esperança e energia. Então ela decide finalmente começar seu processo de descoberta... Voltaria para a cabana, pegaria alguns pertences (cantil, foice, caderno...) e enfim descobriria quais contribuições levaria pra casa quando retornasse do seu retiro de solidão. Um mundo novo finalmente se descortinaria para ela neste seu início de vida adulta.
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Neste momento ela sente que algo está estranho e começa a ter uma intuição ruim. Náusea, tontura, sono...Seu campo de visão começa a se expandir e ela vê tudo por um ângulo superior. É capaz inclusive de ver-se lá em baixo, meio como se dormisse, com o saco de pães caído ao lado. 
Foi então que se deu conta...em seus devaneios distraiu-se. Enquanto lembrava quem era e de onde vinha, aquele vazio espiritual converteu-se em vazio físico. Fome. Sua mão enfiada no pacote de pães quase que por reflexo levou um pedaço até sua boca. Simplesmente comeu. Um pão com aquele veneno que tantas vezes ela tinha desistido de engolir. E agora havia ingerido por acidente colocando fim na história que era para estar apenas começando.
Atrás dela um rastro bizarro de aves e pequenos animais mortos que se estendia do ponto em que seu corpo se encontrava até quase a porta da cabana.
Ela entendeu, então, que nunca mais pegaria o caminho de volta.


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